"Bestiário" de Erros Mais Comuns em Ensaios Filosóficos

 

 
 
 O sono da razão produz monstros
 (Goya, "O Sono na Razão Produz Monstros")
 
 
 
 
 
 
 
Erros Mais Comuns de Gramática

-Crase onde não deve ter, e falta onde deve. A regra fundamental é muito simples: deve ser usada quando a preposição ‘a’ é seguida do artigo definido feminino ‘a’ (e.g., ‘eu vou à igreja’). Onde não há artigo definido, ou se for masculino, não deve haver crase. (É errado ‘restaurante à quilo’, ‘me refiro à isto’, etc.).  (Esta regra básica cobre a enorme maioria dos casos, e previne a enorme maioria dos erros. Para as demais situações e exceções, consultar algum dos muitos sites sobre gramática.
(E.g., http://www.tudosobreconcursos.com/materiais/portugues/crase-regras)

-Vírgulas (excesso ou falta).

-Construções sem sujeito gramatical claro ou sem verbo (e.g., ‘Onde a tese contestável do dever moral acima dos desejos sem exceção.’…). Exceto em contextos muito especiais, estas construções não são gramaticais, não formam uma sentença, e não expressam nada.
 
-Falta de aspas ou uso excessivo e confuso das mesmas (e.g. ‘Vou aqui me ocupar do significado de imperativo categórico’, ‘Kant defende a importância do ‘imperativo categórico’’). Uma aspa significa que vc vai falar da expressão entre aspas, e não da coisa que a expressão significa. E.g., 
 
Paris - se refere à cidade
'Paris' -se refere à palavra.
 
Duas aspas são usadas quando queremos empregar o recurso estilístico de imitar as palavras de outra pessoa a fim de produzir uma ironia ou de gerar uma dúvida sobre a sua verdade. E.g., se quero ridicularizar a explicação que Maradona deu para o famoso gol de mão contra a Inglaterra, posso dizer:
 
Maradona disse que o gol foi feito "pela mão de Deus". 


Erros mais comuns de estrutura:

-Afirmar ou endossar teses sem argumentar para tanto. 
 
-Argumentar contra uma posição sem apresentar (ou definir) o argumento a favor dela. A discussão fica sempre mais clara se o argumento-alvo ficar claro no texto.

-Confundir argumento com tese (ou com uma opinião pessoal a respeito da tese, etc.).

-Texto sem uma tese definida.

-Texto com excesso de teses defendidas/atacadas ao mesmo tempo. (Quanto mais teses, menos focado é o texto.)

-Apresentar, como justificativa ou argumento para uma tese, a própria tese ou uma variação da mesma (incorrendo no que os filósofos chamam de “circularidade” ou “petição de princípio”). (E.g., ‘Penso que a liberdade existe porque as pessoas agem livremente.’)

-Confundir o “é’ com o “deve ser” ou “deveria ser”. (E.g., ‘Eu penso que a liberdade existe porque toda pessoa deveria poder ser livre.’)

-Falta de divisão clara entre a apresentação de um problema, sua tese, seu argumento, sua conclusão. (Sugestão: dividir o texto em seções cuja ordem mais ou menos indique a estrutura do ensaio).

-Falta de conexão (temática ou de relevância) entre uma frase e a seguinte.

-Falta de conexão (temática ou de relevância) entre um parágrafo e o seguinte (i.e., “mudar de assunto” abruptamente).

-Deixar de explicar ou definir um termo importante ou novo introduzido no texto (e.g., ‘Não se deve assumir a isonomia nomológica das categorias’… sem explicar o que entende por ‘isonomia’, ‘nomológica, ou ‘categoria’; ‘Isso vem, segundo Kant, do imperativo categórico’ sem explicar  o que é um imperativo e o que é categórico…).

-Falta de atenção para termos que têm um significado especial em filosofia (e.g., ‘As regras de trânsito são leis necessárias’, ‘Isto indica falta de realismo’, ‘Kant é um idealista: seu ideal era a paz perpétua’, etc.).
 
-Em vez de fazer uma conclusão do texto, terminar o texto apenas repetindo a tese principal. Vale a pena frisar que uma boa conclusão quase certamente não começa com "Por causa disso,", "Dado o que eu argumentei" ou "Sendo assim". 
 

-Argumentar ao longo do texto a favor de uma posição, mas fazer uma conclusão em cima do muro.

-Confundir a explicação clara e fiel da visão de um autor com a sua opinião a respeito. (As duas coisas são importantes, mas são momentos distintos do texto e devem ser cuidadosamente separados.)


Erros mais comuns de estilo:
 
-Não deixar claro ao leitor logo no início do texto qual a tese (ou interpretação) que você vai defender/atacar. Se o leitor tem que ler metade do ensaio antes de entender o que você quer defender/atacar, o texto é ruim. (Sugestão: dar o “roteiro” logo no início, com a indicação de onde você quer chegar e que caminho vai seguir.)

-Uso de expressões imprecisas ou obscuras, como “logicamente bem trabalhado”, “existem em intangibilidade”, “condição verdadeira”, “conclusão oriunda das premissas”.

- Uso de frases extremamente rebuscadas sem necessidade, que podem ser encurtadas com o mesmo efeito, como “a premissa contém falta de clareza”.  A frase não é elegante, e sim prolixa.

-Não deixar claro ao leitor qual a estrutura de seu argumento. Se o leitor tem que fazer muito esforço para entendê-la, isto quase sempre não é sinal de profundidade e sim de confusão.

-Deixar de indicar quando se trata de uma citação de outro autor (mesmo que o seu texto seja sobre este autor). Toda citação deve ser indicada com colocação de aspas (seguidas da data ou nome da obra e página de onde foi retirada) ou separadas do texto, indentada, ou em notas de pé de página (idem: seguida da data ou nome da obra e página). Citação sem aspas ou nenhuma outra indicação é tecnicamente plágio (um pecado mortal!!)

-Excesso de citações: em geral não indica erudição, mas sim preguiça de fazer o trabalho explicativo.

-Usar o texto de um autor em substituição à sua explicação. Quem tem que explicar é você, e não o autor em discussão. A citação deve apenas servir de apoio ocasional ou de ponto de partida para a sua explicação.

-Citações sem nenhuma explicação ou preparação, apenas “jogadas”: isto retira brilho e clareza do texto, ao invés de adicionar. Toda citação precisa ser introduzida e explicada, e ter uma função clara no texto.

-Citações apenas precedidas de um ‘Eu concordo…’ (e.g., ‘Eu concordo com Hume quando diz…(citação).’). Sem um argumento ou razões para concordar (ou discordar), o ‘Eu concordo’ nada adiciona ao texto.

-Substituir uma explicação em termos simples e claros por uma “empolada” e com termos raros ou obscuros. Novamente: se o leitor tem que fazer muito esforço para entender, isto quase sempre é indicador não de profundidade e sim de confusão por parte do autor. Quanto mais claro e preciso, maior o valor de um texto filosófico.

-Substituir uma explicação por uma pergunta (deixada sem resposta).

-Deixar de usar exemplos simples que clarifiquem as teses, distinções, conceitos, etc.

-Inconsistência no uso de iniciais maiúsculas e minúsculas. (E.g., usar em um mesmo texto ‘Platonismo’ e ‘platonismo’, ‘Realismo’ e ‘realismo’).

-Usar, ao invés do nome do autor, descrições do mesmo. (E.g., ‘Aristóteles era um essencialista. De fato, o Estagirita acreditava em essências…. Neste ponto, o pai da lógica clássica diverge de pensadores modernos… etc.’.)

-Inconsistência no tempo verbal (i.e., em um mesmo texto usar ‘Platão afirmou…’ e ‘Platão afirma…’.)

-Inconsistência na pessoa do autor (i.e., ‘Nós vamos argumentar que…embora eu não esteja de acordo…’)

-Inconsistência no uso de numerais (e.g., em um mesmo texto usar ‘Temos não apenas duas teses mas também 3 consequências’)

-Excesso de parágrafos. (Parágrafos curtos (duas ou três sentenças) em geral ou são desconectados do texto, ou são incorporáveis ao parágrafo anterior ou ao posterior).

-Falta de parágrafos (parágrafos muito longos, que poderiam ser divididos em dois ou três menores, tornando o texto mais leve e agradável).

-Usar linguagem coloquial (e.g., ‘Aí então vem Platão e diz que está errado isso’ ou 'Esta tese é o fim da picada, uma viagem total'.).

-Ambiguidade de significado e de estrutura sintática. Toda ambiguidade deve ser eliminada; todo termo com mais de um significado deve ter explicitado qual dos significados está sendo pretendido.

-Excesso de advérbios cumprindo uma mesma função (e.g., ‘É possível que talvez venha a seja viável…etc.’).

-Abuso de cláusulas subordinadas tornam a sentença difícil de ser entendida (e.g., ‘Em princípio, e não sem outra razão, aquele que tem a responsabilidade, no caso moral e não jurídica, em que estamos falando de direito e não de moral, apenas quando sujeito de uma ação, sendo essa livremente determinada, determinação esta de acordo com a lei moral…’ . A menos que você seja um escritor extraordinário como Proust, no meio da frase o leitor já se perdeu). Você deve preferencialmente quebrar um parágrafo longo em várias frases completas curtas e mais simples. Ficará mais fácil para o leitor compreender.

-Fazer digressões biográficas (e.g., ‘Kant era um filósofo alemão que viveu na Prússia sob a proteção de Frederico II, tendo presenciado grandes transformações políticas…etc.’) ou sociológicas (‘As novas gerações fazem um uso equivocado da noção de liberdade’). Estes desvios quase sempre tornam o texto disperso e desfocado, ao invés de torná-lo mais interessante.

-Não explicar ao leitor o que você pretende em passagens cruciais do texto. Deve-se sempre usar um vocabulário explicativo do tipo “Passo agora a argumentar em favor da tese tal e tal’ ou ‘Mostrarei em seguida que esta tese leva a uma consequência implausível’ ou ainda ‘Concluo aqui minha discussão da premissa tal, e passo agora à consideração de tal e tal…’.


Erros mais comuns de estratégia:

-Se você tem dificuldades em escrever uma ideia ou argumento ou distinção em termos simples e intuitivos, não tente “na marra” fazer o texto sair. Muito provavelmente esta dificuldade é sinal de que o seu entendimento está confuso. Primeiro tente entender de maneira mais clara e depois formular de maneira simples. Só vai fluir bem a escrita se a compreensão estiver clara. A formulação gramatical é um “teste” de sua real compreensão.

-Inserir no texto anotações de aula sem que você as tenha entendido. A sua intenção é certamente mostrar entendimento do assunto, mas quase com certeza vai produzir o efeito contrário.

-Nunca se finaliza um texto na primeira versão. Um texto deve passar por várias revisões, correções, reformulações, etc.

-Assumir que o leitor sabe o que você quer dizer se você não explicar claramente. Um bom texto é aquele capaz de ser entendido mesmo por um não-especialista no assunto.

-Fazer uma digressão de tudo o que você sabe relacionado ao assunto. Apenas aquilo que é estritamente relevante para o tópico do ensaio deve ser abordado.  (Se for a resposta de uma questão, aborde apenas aquilo que é necessário para respondê-la.) Muitas vezes um ensaio contém muitas coisas corretas, mas elas não são relevantes ou não se articulam para dar uma resposta à questão proposta.

-Recorrer a vivências pessoais sobre o assunto em discussão (e.g., ‘Em minha formação católica aprendi que mentir é errado, logo a minha visão sobre a mentira…etc.’ ou ‘A arte me completa e dá um novo sentido à minha vida, portanto o belo é parte essencial de nossa vida…etc.’).

-Substituir uma explicação clara e ilustrada por exemplos por termos “eruditos” sem explicação e sem exemplos. Em filosofia, a erudição não é substituto para a clareza e bom encadeamento de raciocínio.

-Achar que escrever bem ou é fácil e imediato ou é dificílimo e impossível. Escrever bem é difícil, mas não no sentido em que ganhar um campeonato é difícil (poucos conseguem) e sim no sentido em que emagrecer ou tocar bem um instrumento é difícil: todos em princípio podem, mas requer dedicação, esforço constante, autocrítica, submissão a críticas alheias, correção de erros, etc. Um filósofo que escreve bem em geral teve o seu estilo depurado ao longo de muitos anos. (Alguns filósofos importantes na verdade escrevem mal!!)


   Erros filosóficos e conceituais mais frequentes 

- Confusão entre validade do argumento e verdade ou falsidade das premissas.

- Falta de caridade interpretativa: interpretar alguma premissa ou conceito de maneira capciosa ou preguiçosa, de modo que a posição do autor seja mais facilmente criticável. Pense antes se outra interpretação melhor (i.e., que torna mais plausível a posição do autor discutível) não está disponível. Ex.: dizer que a premissa do argumento ontológico “ou Deus existe ou não existe” não deixa claro o conceito de existência sendo usado, ou dizer que perfeição não é dada em graus e portanto todas as premissas que contêm a expressão “mais perfeito” são falsas.

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